Coronavírus : Rotina de UTI faz enfermeira trabalhar de fralda para preservar equipamento


Camila com colegas, paramentada para atender pacientes com coronavírus na UTI - Arquivo pessoal

Camila com colegas, paramentada para atender pacientes com coronavírus na UTI.   Imagem : Arquivo pessoal





Felipe Pereira

Do UOL, em São Paulo 03/04/2020 04h00 

Camila Gonçalves Azeredo, 28 anos, é uma das pessoas que tentam curar pacientes de coronavírus. Ela é enfermeira de terapia intensiva do Hospital das Clínicas de Curitiba. Quando escolheu essa especialidade, assinou um contrato tácito de aceitar situações extremas. 

Mas a covid-19 ampliou essa condição. Hoje, Camila trabalha de fralda porque ir ao banheiro inutiliza o equipamento de proteção individual.

A enfermeira fez esse relato em uma postagem no Facebook na segunda-feira (30). Nele, cita a renúncia emocional que a pandemia exige de profissionais de saúde. Também mostra os reflexos na vida pessoal e o esgotamento. 


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Camila precisa de uma série de autorizações para conceder entrevistas, algo que pre
feriu não fazer. Mas o hospital permitiu a reprodução do texto que foi divulgado na rede social.

O relato abaixo é a postagem:

"Hoje faz uma semana. E tomei coragem para escrever um pouco sobre meus sentimentos. Faz uns dois meses que o medo da COVID-19 começou a tomar conta do meu pensamento e do pensamento dos meus colegas... Aos poucos fomos treinando e presenciando mudanças drásticas na organização do hospital. E o medo foi crescendo.

A partir de duas semanas atrás, eu fui ficando até mais tarde no hospital, sem almoço e cansada. Precisava treinar mais e mais. Há sete dias, o Joaquim foi, ainda meio doentinho, morar com a vovó para ficar mais seguro. Levou todos os brinquedos que já faziam parte da decoração bagunçada da casa.


O Cris ficou cuidando de mim e da casa. Eu fui cedida para a UTI COVID-19, referência para todo o hospital nesse momento. Mais e mais treinamentos. A paramentação é quente, a máscara machuca, os óculos e o protetor facial embaçam.

Não podemos tocar no rosto, não podemos beber água e nem ir ao banheiro depois de paramentados. Não podemos comer, não podemos sair para tomar um fôlego ali fora. Se eu sair do ambiente contaminado, preciso jogar avental, luvas, touca e máscara no lixo. E precisamos poupar material, tudo isso é muito caro e o medo de faltar é grande.

Não posso me dar o luxo de jogar um avental e uma máscara no lixo só porque eu quero fazer um xixizinho. Ganhei fraldas do marido. Não consegui usar nos primeiros dias. A bexiga explodindo, e não consegui usar a fralda. Na saída, preciso de ajuda para tirar roupas e sapatos, para não contaminar a parte limpa do setor do hospital.

Tomo banho com degermante [produto para tirar microrganismos da pele] no corpo todo. Aí meu cabelo está parecendo uma vassoura. Chego em casa e tiro toda a roupa do lado de fora, com a ajuda do Cris. A roupa segue direto para máquina, e eu, direto para outro banho. E chegou a parte boa. Comida quentinha que o marido fez e um cochilo na sala, às vezes até com direito a colinho do marido.

Mas na casa vazia tudo lembra o Joaquim. Aprendi muito essa semana sobre meu trabalho e sobre meu corpo... Aprendi muito sobre meu casamento e sobre a fragilidade humana. Hoje [segunda-feira], ao chegar ao trabalho, deu um embrulho no estômago quando começamos a pronar os pacientes [manobra hospitalar para combater a falta de oxigenação no sangue]. Abrimos às pressas 20 leitos de UTI, um do lado do outro. A área de pacientes contaminados está cada vez maior.

Imaginei tudo aquilo cheio na semana que vem. Imaginei o cansaço. Quando o telefone toca no setor, sinto uma dor no coração. É alguém da família de algum paciente desesperado por notícias. Não podem visitar, não podem vir ao hospital, só recebem notícias por telefone. E nem sempre são boas essas notícias. Que Deus me livre, por favor, de passar por essa angústia.

Que saudade dos meus colegas. Saudade da Mariely Roseira, minha amiga e minha irmã mais nova, que não se importaria em ouvir cada desabafo meu neste momento. Que saudade da minha família, da broa da bisa, dos almoços de domingo com as tias falando todas ao mesmo tempo. Saudades de posar na casa da vovó Nenê quando dava saudades de lá. De conversar na garagem cheia de plantas do meu pai, enquanto o Joaquim apronta ali pertinho da gente e a Andréia conta alguma história engraçada que aconteceu durante a semana.

Que saudade de visitar a bisa e a vovó Mara. Do café da tarde com o tio Mô. Que saudades de vocês. Se cuidem muito. Eu vou precisar muito de vocês depois disso tudo.

Amo vocês."

Camila Gonçalves Azeredo, enfermeira de terapia intensiva


Imagem : Arquivo pessoal






Quarentena é necessária, com certeza !


CORONA EXPRESS: Retratos da vida em quarentena (terça, 17/3 ...





Como os chineses enfrentaram a quarentena com esperança, arte e humor



EQUIPES DE SAÚDE EM WUHAN COMEMORAM O DIA INTERNACIONAL DA MULHER. FOTO : CHENG MIN/CHINHUA



Em suas próprias redes sociais, eles cantaram, dançaram 

 zoaram – exatamente como o resto do mundo




Por Belinda Kong, no The Conversation

Medo e culpa parecem estar rapidamente se tornando as emoções determinantes dos norte-americanos em relação ao COVID-19. As manchetes parecem oferecer ou as piores estimativas possíveis ou troca de acusações entre governantes. Estes comportamentos, similares em outros países que se tornaram epicentros do COVID-19, demonstram a ideia de resiliência pandêmica –a possibilidade de que se consiga passar por surtos de doença com empatia, engenhosidade e absoluta normalidade humana

Em meio a cifras confusas e narrativas políticas contraditórias, é importante lembrar que números e governos são abstrações, enquanto as pessoas convivem com a doença e passam por ela de verdade. Ao nos fixarmos nos primeiros, nos arriscamos a perder de vista as dimensões humanas da vida durante a epidemia.

Como estudiosa que pesquisava os aspectos culturais da epidemia de SARS em 2003, também eu de início me foquei em geopolítica e biossegurança. Mas o que descobri além disso foram as formas vibrantes da vida em comum no dia-a-dia geradas pelo SARS nos seus próprios epicentros, raramente discutidas, mas crucialmente humanizadoras.

Sob condições de isolamento e distanciamento social obrigatórios, as pessoas comuns inventavam novos tipos de sociabilidade e novos gêneros de expressões epidêmicas. Com o COVID-19 agora, ainda mais que com o SARS, a internet e as mídias sociais chinesas oferecem uma gama variada de exemplos de comunidades afetadas pela epidemia e reunidas pela emoção, humor e criatividade.

Um primeiro conjunto de vídeos viralizados veio à tona em Wuhan apenas cinco dias após o confinamento da cidade. Na noite de 27 de janeiro, os residentes gritaram “jiayou” – literalmente “ponham óleo”, o que quer dizer “aguentem firmes” ou “não deem pra trás”– das janelas de seus apartamentos, numa explosão de solidariedade espontânea. Foi uma demonstração de força e desafio coletivos, de recusa das pessoas de serem sufocadas pelo vírus e pela quarentena, e de seu desejo de torcer umas pelas outras.

Um desses clipes, publicado no youtube pelo jornal South China Morning Post, teve mais de um milhão de acessos, com internautas de inúmeros países asiáticos ecoando “Wuhan jiayou!” como encorajamento. De fato, o refrão se espalhou até virar um grito de guerra internacional nas redes sociais, a despeito das tentativas do governo chinês de se apropriar dele como um slogan de patriotismo étnico-nacional




Este espírito de apoio recíproco se estende ao cuidado com os animais. O confinamento de Wuhan fez com que dezenas de milhares de residentes ficassem ilhados do lado de fora da cidade, deixando aproximadamente 50 mil animais de estimação presos em casas abandonadas. Através das mídias sociais, alguns donos de animais domésticos se conectaram com Lao Mao (“Velho Gato”), que dirige uma equipe de resgatadores de animais voluntários em Wuhan. Estes resgatadores percorrem a cidade e às vezes arrombam casas desertas para alimentar cães e gatos abandonados.




Fora de Hubei, outros amantes de animais ajudam aqueles que estão confinados no interior da província a cuidar dos seus animais de estimação em casa. Estes relatos de cuidados com os animais, mesmo em tempos de crise humana, podem compensar, com proveito, as impressões de que a cultura chinesa é só consumo animal cruel e desenfreado.

Outro foco inesperado do cuidado coletivo é a máscara facial. Por toda a China, as máscaras se tornaram um veículo poderoso para se pôr em prática a benevolência, a generosidade e a fraternidade durante a epidemia. Num vídeo de Anhui que viralizou, um bom samaritano anônimo foi capturado por uma câmera de vigilância deixando 500 máscaras num posto policial local. Quando se apressou em sair dali, dois policiais correram atrás para cumprimentá-lo.



Este vídeo, por sua vez, inspirou a cantora de Hong Kong G.E.M. (Gloria Tang/Deng Ziqi) a compor Angels, uma canção que teve cerca de 600 mil visualizações só no primeiro dia. Um tributo aos pequenos atos de coragem e bondade de pessoas simples durante o surto, o vídeo da música abre com o clipe de Anhui e depois emenda outras cenas tocantes, incluindo um empregado de trem que oferece uma máscara a uma passageira idosa e um homem que distribui máscaras de graça a viajantes num aeroporto no estrangeiro.



Esta energia criativa também instigou o humor popular chinês. Em lugares confinados por todo o país, as redes sociais chinesas estão desovando um novo gênero de humor de quarentena. No Weibo, WeChat e Douyin (TikTok), proliferam memes provocados pelo tédio e pela claustrofobia da quarentena.



Internautas se filmam cantando o blues do confinamento adaptando canções clássicas, pescando em aquários domésticos, jogando mahjong com sacos plásticos na cabeça, jogando mahjong solo, badminton na sala de estar e coreografando movimentos de dança amalucados.



As pessoas também colocam à mostra seu espírito criativo ao vestirem equipamento de proteção e se aventurarem até lojas de conveniência e parques da vizinhança com fantasias infláveis de tiranossauros, alienígenas verdes e árvores de Natal. Quando ficam sem máscaras faciais, alguns, meio de gozação, as substituem por sutiãs, absorventes e cascas de laranja.



Como relata Manya Koetse de Beijing, estas tendências das redes sociais permitem que as pessoas “zombem dos vizinhos, seus amigos ou família, ou mesmo de si próprios, pelas medidas extremas e às vezes bobas que estão tomando para evitar o coronavírus”. Contudo, mais que zombaria, o próprio compartilhamento desses memes é um ato social construtivo e sanador. Em tempos de alto estresse e desconforto, manter essas comunidades virtuais é oferecer reconhecimento, consideração e riso partilhados.


People in China found another way to greet since they can't shake hands.

The Wuhan Shake.

I love how people can adapt and keep a sense of humor about stressful situations.












Isto não significa que a experiência epidêmica da China seja somente despreocupada e afirmativa. Mas a vida nos epicentros da crise tampouco tem de ser apocalíptica, marcada por heróis e vilões épicos ou cenários de terror com colapso e conflito.

De fato, em outros países que desde então se tornaram epicentros do COVID-19, as redes sociais oferecem exemplos tão inspiradores quanto. Profissionais de saúde no Irã dançam nos corredores de hospitais para levantar os ânimos de seus pacientes bem como de si mesmos, e os italianos em confinamento cantam de suas sacadas para aumentar o moral uns dos outros – por sua vez inspirando uma série de vídeos de “jiayou Itália” dos internautas chineses.



Coletivamente, estes comportamentos demonstram a ideia de resiliência pandêmica –a possibilidade de que se consiga passar por surtos de doença com empatia, engenhosidade e absoluta normalidade humana.


Belinda Kong é professora de Estudos Asiáticos no Bowdoin College.