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Nem toda tempestade deixa a pessoa mais forte




Nos últimos tempos, cresce imensamente a quantidade de materiais vários voltados a ajudas emocionais. Canais do youtube, perfis do Instagram, vídeos do tiktok, livros, cursos, inúmeras são as formas como as pessoas vendem materiais que tratam de trazer alento e formas de superação. O mundo anda difícil. Quanto maior a demanda, maior a variedade de ajudas a serem compradas.

Há muita coisa boa por aí, mas, como em tudo, existem também discursos que, em vez de ajudar, pioram ainda mais os sentimentos da gente. Chega uma hora em que a pessoa se sente cada vez mais impotente, como se ela fosse incapaz de ficar forte ou feliz. Parecem obrigatórias a felicidade, a resiliência, a persistência. Mas não é assim que funciona, não toda hora, nem todo dia.

Fala-se muito, por isso, na tal da positividade tóxica, que insiste tanto na nossa necessidade de ser forte, que até nos assustamos por não sermos felizes sempre. Por sermos humanos. Na verdade, o senso comum bate naquela tecla do “sofrimento que fortalece”. É como se apenas fôssemos capazes de amadurecer na dor; ou seja, a dor é o espaço, por excelência, do aprendizado. É como se somente através das lágrimas a gente conseguisse expurgar tudo de ruim que se encontra dentro de nós.

Porém, não podemos nos esquecer de que também conseguimos aprender e nos fortalecer sem doer. Momentos felizes podem ser fontes preciosas de aprendizado e de fortalecimento, sim. Nem sempre será preciso obter feridas para continuar melhor e mais forte. Atitudes acolhedoras, palavras amigáveis, momentos gostosos, muitas situações prazerosas trazem sabedoria, porque ali o amor está presente. O amor é um ótimo professor.

Algumas dores diminuem, mas permanecem ali num cantinho dentro de nós. Certas experiências traumatizam e deixam marcas que não saem. Nem toda tempestade deixa a pessoa mais forte. Algumas experiências são tão devastadoras, que a pessoa até se reergue, mas não se fortalece. Há sofrimentos irreparáveis, não romantizem.







Viver, sofrer, esperançar






Viver traz o risco de sofrer. Mas viver também traz esperança, fé e encontros inesquecíveis. Sempre valerá a pena.


Marcel Camargo

Hoje eu escreverei um pouco sobre a dor. Viver traz essa dor, porque a gente não sente sozinho, não depende somente do que é nosso ser feliz. Eu vou além de mim e, quanto mais eu vivo, mais pessoas fazem parte de mim. Minha corrente afetiva se estende além do que eu quero, sinto, pretendo. Eu olho para as vidas que não são minhas e não consigo ser indiferente. E lá tem dor também.

Eu olho para as vidas de quem amo e lá tem dor também. Eu queria ser mais egoísta, mais positivo, daquele tipo que se coloca sempre como prioridade, mas não consigo. Desde criança, eu sou assim, uma pessoa que fica prestando atenção nas dores que não são minhas, porque eu sempre senti demais o mundo, o que se passa, o amor de minha mãe. A intensidade sempre fez parte de minha afetividade, por isso acho que fui uma criança diferente, estranha.

Eu sei exatamente o que me machuca e quais são meus pontos fracos. Infelizmente, outras pessoas também sabem isso sobre mim e, às vezes, resolvem estacionar bem ali nos meus espaços vulneráveis. Porque muitas pessoas não conseguem sentir intensamente, vivem no raso, ao redor de si mesmas e, por isso, não se importam com o estrago que fazem nas vidas alheias. E esse é um de meus maiores medos: a maldade humana.

Li que poucos são os psicopatas que matam, a maioria deles apenas devastam as vidas por onde passam. Isso assusta. Eu não temo mostrar fraqueza ou derramar lágrimas por toda a fragilidade que me define. Isso não deveria ser um problema, mas é. Tem gente que usa contra nós o nosso melhor. Tem gente que inveja nossas conquistas, sem perceber o tanto que lutamos até chegar ali. E eu, lotado de sensibilidade que sou, acabo por me molhar em tempestades que não criei.

Eu já me conscientizei de que sentir a dor que não dói em mim pode ser doloroso demais. Mas assim sou e sempre serei. E é por essa razão que alguns dias doem bem fundo. Tem saudade, rompimento, tem perda, arrependimento. Tem tombo. É o preço que pagamos por sentir, por doar, por acreditar, por amar. Viver traz o risco de sofrer. Mas viver também traz esperança, fé e encontros inesquecíveis. Sempre valerá a pena.











Imperdível nesta manhã de sábado a reportagem do The New York Times sobre o drama dos efeitos do novo coronavírus na Amazônia


E daí ?


Fernando Brito


Leitura – e visão – imperdível nesta manhã de sábado a reportagem do The New York Times sobre o drama dos efeitos do novo coronavírus na Amazônia, com fotografias impressionantes de Tyler Hicks, vencedor do Prêmio Pulitzer de Fotografia de 2014 e com vasta experiência em coberturas de guerras e dramas himanos. Curiosamente, Tyler nas ceu em São Paulo, embora tenha se formado em Boston e viva hoje no Quênia. Os textos são de Julie Turkevitz e da repórter brasileira Manuela Andreoni, com gráficos animados de Jeremy White.



O desespero de famílias como a de Gertrude do Santos – a da foto – é descrito com crua delicadeza na publicação, que está aberta ao acesso público:



Gertrude Ferreira Dos Santos morava no extremo leste da cidade [de Manaus], em um bairro pressionado contra a água. Ela costumava dizer que sua coisa favorita no mundo era viajar de barco pelo rio. Com a brisa no rosto, ela se sentia livre.
Então, em maio, a senhora dos Santos, 54 anos, adoeceu. Dias depois, ela chamou seus filhos para a cama, fazendo-os prometerem ficar juntos. Ela parecia saber que estava prestes a morrer.
As equipes funerárias trabalhavam dia e noite para coletar corpos, incluindo o da Sra. Dos Santos. Muitas pessoas com sintomas do vírus preferem ficar em casa, com medo do hospital e morrendo sozinhas.
Houve tantas mortes em Manaus que a cidade cortou novos cemitérios da floresta densa.
Eduany, 22 anos, sua filha mais nova, ficou com ela naquela noite. No início da manhã, quando Eduany se levantou para fazer uma pausa, sua irmã Elen, 28 anos, implorou para que ela voltasse. A mãe deles parou de respirar. As irmãs, desesperadas, tentaram ressuscitar boca a boca. Às 6 horas da manhã, com o sol nascendo sobre a cidade, a Sra. Dos Santos morreu em seus braços.
Quando homens de traje de proteção branco chegaram mais tarde para levar seu corpo, as irmãs começaram a lamentar.
Dos Santos era mãe solteira. A vida nem sempre foi fácil. Mas ela tinha mantido um sentimento de encantamento, algo que suas filhas admiravam. “Em tudo o que ela fez”, disse Elen, “ela estava alegre.”
O atestado de óbito de sua mãe listou muitas condições subjacentes, incluindo problemas respiratórios de longa data, de acordo com as mulheres. Ele também listou insuficiência respiratória, indicador importante de que uma pessoa morreu devido ao coronavírus.
Mas suas filhas não acreditavam que ela era vítima da pandemia. Certamente ela havia morrido de outras causas, disseram eles. Deus não teria dado a ela uma doença tão feia.

Gertrude é uma das mais de 85 mil pessoas que se foram para esta doença tão feia e sua família mereceu de um jornal norte-americano a atenção à sua dor.

Do presidente de seu país, apenas um “e daí? Vai morrer gente, mesmo”.

Querendo ler, diretamente, no The New York Times, clique no título abaixo :





Fotografias por Tyler Hicks

Escrito por Julie Turkewitz e Manuela Andreoni

Gráficos por Jeremy White

25 de julho de 2020


O VÍRUS VARREU A REGIÃO como pragas passadas que viajaram o rio com colonizadores e corporações.

Espalhou-se com as canoas de escavação que transportavam famílias de cidade em cidade, os botes de pesca com motores de chocalho, as balsas movendo mercadorias por centenas de quilômetros, cheias de passageiros dormindo em redes, lado a lado, por dias de cada vez.

O Rio Amazonas é a fonte de vida essencial da América do Sul, uma super rodovia brilhante que corta o continente. É a artéria central de uma vasta rede de afluentes que sustenta cerca de 30 milhões de pessoas em oito países, movendo suprimentos, pessoas e indústria profundamente em regiões florestadas muitas vezes intocadas por estradas.


Mas, mais uma vez, em um eco doloroso da história, também está trazendo doenças.

Redes tornaram-se macas, levando os doentes de comunidades sem médicos

Uma família de luto por sua matriarca, Gertrude Ferreira dos Santos, que passou a vida ao longo do rio

Ambulâncias de barco viajam por horas para alcançar um único paciente

À medida que a pandemia ataca o Brasil, sobrecarregando-o com mais de dois milhões de infecções e mais de 84.000 mortes — perdendo apenas para os Estados Unidos —, o vírus está tomando um pedágio excepcionalmente alto sobre a região amazônica e as pessoas que dependem de sua abundância há gerações.

No Brasil, as seis cidades com maior exposição ao coronavírus estão todas no Rio Amazonas, de acordo com um novo estudo expansivo de pesquisadores brasileiros que mediu anticorpos na população.

A epidemia se espalhou tão rapidamente e completamente ao longo do rio que, em comunidades remotas de pesca e agricultura como Tefé, as pessoas têm sido tão propensas a obter o vírus como em Nova York, lar de um dos piores surtos do mundo.

"Foi tudo muito rápido", disse Isabel Delgado, 34, cujo pai, Felicindo, morreu do vírus pouco depois de adoecer na pequena cidade de Coari. Ele nasceu no rio, criou sua família por ele e construiu sua vida elaborando móveis a partir da madeira em suas margens.

Nos últimos quatro meses, à medida que a epidemia viajava da maior cidade da Amazônia brasileira, Manaus, com seus arranha-céus e fábricas, para pequenas e aparentemente isoladas aldeias no interior, o frágil sistema de saúde tem cedido sob o ataque.

Cidades e cidades ao longo do rio têm algumas das maiores mortes per capita do país — muitas vezes várias vezes a média nacional. Em Manaus, havia períodos em que cada ala covid estava cheia e 100 pessoas morriam por dia, empurrando a cidade para cortar novos cemitérios de mata grossa. Coveiros colocavam fileiras de caixões em longas trincheiras esculpidas na terra recém-transformada.

Descendo o rio, as redes se tornaram macas, levando os doentes de comunidades sem médicos para ambulâncias de barco que se acariciam através da água. Em áreas remotas da bacia hidrográfica, aviões medevac pousam em pequenas pistas de pouso cortadas na paisagem exuberante apenas para descobrir que seus pacientes morreram enquanto esperavam por ajuda.

O vírus está exigindo um pedágio especialmente alto sobre os povos indígenas, um paralelo com o passado. Desde 1500, ondas de exploradores percorreram o rio, buscando ouro, terra e convertidos — e mais tarde, a borracha, um recurso que ajudou a alimentar a Revolução Industrial, mudando o mundo. Mas com eles, esses forasteiros trouxeram violência e doenças como varíola e sarampo, matando milhões e exterminando comunidades inteiras.

"Este é um lugar que gerou tanta riqueza para os outros", disse Charles C. Mann, um jornalista que escreveu extensivamente sobre a história das Américas, "e veja o que está acontecendo com ele".

Os indígenas têm cerca de seis vezes mais chances de serem infectados pelo coronavírus do que os brancos, segundo o estudo brasileiro, e estão morrendo em aldeias distantes do rio intocadas pela eletricidade.

MESMO NOS MELHORES TEMPOS, a Amazônia estava entre as partes mais negligenciadas do país, um lugar onde a mão amiga do governo pode se sentir distante, mesmo inexistente.

Mas a capacidade da região de enfrentar o vírus tem sido ainda mais enfraquecida sob o presidente Jair Bolsonaro, cujas demissões públicas da epidemia têm sido, por vezes, em escárnio, embora ele tenha testado positivo.

O vírus surgiu no relógio desorganizado e sem brilho de seu governo, rasgando a nação. Desde seus primeiros dias no cargo, Bolsonaro deixou claro que proteger o bem-estar das comunidades indígenas não era sua prioridade, cortar seus financiamentos, reduzir suas proteções e incentivar invasões ilegais em seu território.

Para o forasteiro, a região densamente florestada ao longo do rio Amazonas parece impenetrável, desconectada do resto do mundo.

Mas esse isolamento é enganoso, disse Tatiana Schor, professora brasileira de geografia que vive de um dos afluentes do rio.

"Não existem comunidades isoladas na Amazônia", disse ela, "e o vírus mostrou isso".

Os barcos nos quais quase todos dependem , às vezes lotados com mais de 100 passageiros por muitos dias, estão por trás da propagação do vírus, dizem os pesquisadores. E mesmo que os governos locais tenham oficialmente limitado as viagens, as pessoas continuaram a levar para a água porque quase tudo - comida, remédios, até mesmo a viagem para a capital para pegar ajuda emergencial - depende do rio.

Pessoas doentes viajaram no rio para serem testadas para o vírus

Estudiosos há muito se referem à vida na Amazônia como uma "maneira anfíbia de ser".

A crise na Amazônia brasileira começou em Manaus, cidade de 2,2 milhões que saiu da floresta em uma erupção de concreto e vidro, afunilando em suas bordas a aglomerados de casas de madeira empoleiradas em palafitas, no alto da água.

Manaus, capital do Estado do Amazonas, é hoje uma potência industrial, um grande produtor de motocicletas, com muitos negócios estrangeiros. Está intimamente ligado ao resto do mundo — seu aeroporto internacional tem cerca de 250.000 passageiros por mês — e, através do rio, para grande parte da região amazônica.

O primeiro caso documentado de Manaus, confirmado em 13 de março, veio da Inglaterra. O paciente apresentava sintomas leves e estava em quarentena em casa, em uma parte mais rica da cidade, de acordo com as autoridades de saúde da cidade.

Logo, porém, o vírus parecia estar em toda parte.

"Não tínhamos mais leitos — nem mesmo poltronas", disse o Dr. Álvaro Queiroz, 26 anos, sobre os dias em que seu hospital público em Manaus estava completamente lotado. "As pessoas nunca pararam de vir."

Gertrude Ferreira Dos Santos morava na orla leste da cidade, em um bairro pressionado contra a água. Ela costumava dizer que sua coisa favorita no mundo era viajar o rio de barco. Com a brisa em seu rosto, ela disse, ela se sentiu livre.

Então, em maio, a Sra. dos Santos, 54 anos, adoeceu. Dias depois, ela chamou seus filhos para sua cama, fazendo-os prometer ficar juntos. Ela parecia saber que estava prestes a morrer.

Equipes funerárias trabalharam 24 horas por dia para recolher corpos, incluindo o da Sra. dos Santos

Muitas pessoas com sintomas do vírus preferem ficar em casa, com medo do hospital e de morrer sozinha

Houve tantas mortes em Manaus que a cidade cortou novos cemitérios de mata grossa

Eduany, 22 anos, sua filha mais nova, ficou com ela naquela noite. No início da manhã, quando Eduany se levantou para fazer uma pausa, sua irmã Elen, 28, implorou para ela voltar.

A mãe deles parou de respirar. As irmãs, em desespero, tentaram ressuscitação boca-a-boca. Às 6 da manhã, o sol nascendo sobre a cidade, a Sra. dos Santos morreu em seus braços.

Quando homens de terno branco de proteção chegaram mais tarde para levar seu corpo, as irmãs começaram a chorar.

A Sra. dos Santos tinha sido mãe solteira. A vida nem sempre foi fácil. Mas ela tinha mantido um senso de admiração, algo que suas filhas admiravam. "Em tudo o que ela fez", disse Elen, "ela estava alegre."

A certidão de óbito de sua mãe listou muitas condições subjacentes, incluindo problemas respiratórios de longa data, de acordo com as mulheres. Também listou insuficiência respiratória, um indicador chave de que uma pessoa morreu do coronavírus.

Mas suas filhas não acreditavam que ela era vítima da pandemia. Ela certamente tinha morrido de outras causas, disseram eles. Deus não teria lhe dado uma doença tão feia.

Ao longo do rio, as pessoas diziam coisas semelhantes uma e outra vez, relutantes em admitir um possível contágio, mesmo quando a saúde de seus irmãos e pais declinou. Muitos pareciam pensar que suas famílias seriam evitadas, que um diagnóstico de alguma forma mancharia uma vida digna.

Mas como esse estigma levou as pessoas a jogar para baixo sintomas do vírus por medo, os médicos disseram, a pandemia estava se espalhando rapidamente.

Depois de Manaus, o vírus viajou para leste e oeste, correndo para longe do centro de saúde da região.

Equipes médicas viajando para testar pessoas

Um centro comunitário foi transformado em uma clínica de ambulatório

Em lugares distantes da capital, suprimentos básicos, incluindo desinfetante, são enviados para dentro


EM MANACAPURU, a mais de uma hora da capital, Messias Nascimento Farias, 40 anos, levou a esposa doente até o carro e acelerou uma das poucas estradas rurais da região para encontrar a ambulância que poderia levá-la a um hospital.

Sua esposa, Sandra Machado Dutra, 36 anos, engasgou em seu caminhão.

"O Senhor é meu pastor, eu não quero", ele orou mais e mais até que ele a entregou aos profissionais de saúde. Eles tiveram sorte. Ela sobreviveu.

Mas para a maioria das pessoas que vivem ao longo do rio, a centenas de quilômetros de barco de Manaus, o caminho mais rápido para um grande hospital é de avião.

Mesmo antes do vírus chegar, pessoas em comunidades distantes com uma emergência com risco de vida poderiam fazer uma chamada frenética para uma ambulância de avião que os levaria a um hospital na capital.

Mas os aviões pequenos acabaram por ser perigosos para as pessoas com Covid-19, às vezes fazendo com que os níveis de oxigênio no sangue despenquem à medida que a aeronave subia. Muito poucos dos pacientes do transporte aéreo pareciam estar sobrevivendo, disseram os médicos.

Em vez disso, médicos e enfermeiros se viram levando seus pacientes para mortes dolorosas longe de tudo e de todos que amavam.

Numa manhã de maio, um avião branco pousou no aeroporto de Coari, a cerca de 300 km de Manaus.

Sandra Machado Dutra desmaiou antes de ser levantada em uma ambulância

A família de Felicindo Delgado, o fabricante de móveis, acenou adeus quando ele foi carregado em um avião em Coari

O voo afetou o Sr. Delgado


Na pista em uma maca estava o Sr. Delgado, 68 anos, o fabricante de móveis, descalço e mal respirando.

Dr. Daniel Sérgio Siqueira e uma enfermeira, Walci Frank, exaustos após semanas de trabalho constante, o carregaram para a pequena cabine. À medida que o avião subia, seus níveis de oxigênio começaram a cair.

A filha do Sr. Delgado, Isabel, recorreu ao médico em pânico. "Meu pai é muito forte", ela disse a ele. "Ele vai conseguir."

Quando os Delgados finalmente chegaram ao hospital em Manaus, Isabel ficou chocada com as cenas ao seu redor. Parentes desesperados ergueram entes queridos que haviam amassado sob o fardo da doença, apressando-os para o tratamento.

Ao mesmo tempo, os pacientes que tinham conseguido sobreviver a Covid-19 cambalearam para fora, para os braços alegres da família e amigos.

"Eu estava lá", disse ela, "rezando para que Deus salvasse meu pai."

Delgado morreu alguns dias depois. Quando Isabel descobriu, o médico começou a chorar com ela.

Ela não tinha dúvidas de que o rio que seu pai amava também lhe trouxe o vírus. Logo, ela e outros cinco membros da família também adoeceram.

Uma família em Manacapuru se reuniu para ouvir a avaliação de um médico

Um médico tratando uma paciente frágil em sua casa em Manacapuru

Algumas pessoas que ficaram doentes esperaram até ficarem muito fracas para ir ao hospital


QUANDO O CORONAVÍRUS CHEGOU ÀS AMÉRICAS, havia um medo generalizado de que isso levaria a um impacto devastador sobre as comunidades indígenas em toda a região.

Em muitos lugares ao longo do rio Amazonas, esses medos parecem estar se tornando realidade.

Pelo menos 570 indígenas no Brasil morreram da doença desde março, segundo uma associação que representa os indígenas do país. A grande maioria dessas mortes foram em lugares ligados ao rio.

Mais de 18.000 indígenas foram infectados. Líderes comunitários relataram aldeias inteiras confinadas às suas redes, lutando para se levantar até mesmo para alimentar seus filhos.

Em muitos casos, os próprios profissionais de saúde enviados para ajudá-los espalharam inadvertidamente o vírus.

No povoado ribeirinho de São José da Fortaleza, os parentes do chefe Iakonero Apurinã mandaram, um a um, que não podiam comer, que ouviam vozes,que estavam muito doentes para se levantar.

Logo, pareceu ao chefe que todos em sua comunidade estavam doentes.

As famílias de Apurinã sobreviveram a gerações de violência e trabalho forçado. O vírus os testou de novo.

O vírus atingiu durante a estação chuvosa, inchando as vias navegáveis

As balsas continuaram a cercar a região, com pessoas dormindo lado a lado por dias de cada vez


O chefe Apurinã, 54, disse que seu grupo de 35 famílias Apurinã sobreviveu a gerações de violência e trabalho forçado. Eles haviam chegado a São José da Fortaleza décadas atrás, acreditando que finalmente estariam seguros.

Foi o rio, disse o chefe, que os sustentou, alimentando, lavando e limpando espiritualmente.


Então a nova doença chegou, e o chefe estava transportando chás tradicionais de casa em casa. Logo veio sua própria tosse e exaustão. Um teste em Coari confirmou que ela havia pegado o vírus.

O Chefe Apurinã não culpou o rio. Ela culpou as pessoas que viajaram.

"O rio para nós é a purificação", disse ela. "É a coisa mais linda que existe."

Milagrosamente, ela disse que em meados de julho, nenhuma pessoa entre as 35 famílias havia morrido.

Em Tefé, cidade de 60 mil pessoas a quase 600 quilômetros ao longo do rio de Manaus, o vírus chegou com força de vendaval.

No pequeno hospital público, onde os funcionários inicialmente planejavam acomodar 12 pacientes, cerca de 50 lotaram a unidade improvisada Covid-19. Laura Crivellari, 31 anos, a única especialista em doenças infecciosas do hospital, os acolheu, fazendo o que pôde com dois respiradores, sem unidade de terapia intensiva, muitos colegas doentes — e ninguém para substituí-los.

Em um dos piores momentos, ela foi a única médica de plantão por dois dias, supervisionando dezenas de pacientes em estado crítico.

Os pacientes rapidamente sobrecarregaram a ala Covid-19 do hospital em Tefé

A morte constante em Tefé levou um médico ao ponto de ruptura

Aguardando sepultamento em Tefé

A morte constante levou o Dr. Crivellari ao seu ponto de ruptura. Alguns dias ela mal parava para comer ou beber.

Em casa, ela compartilhou sua angústia com seu parceiro. Ela estava pensando em desistir da medicina, ela disse. "Não posso continuar assim", ela disse a ele.

A pandemia tem sido brutal para os trabalhadores médicos em todo o mundo, e tem sido particularmente difícil para os médicos e enfermeiros que navegam pelas grandes distâncias, cortes frequentes de comunicação e escassez profunda de suprimentos ao longo da Amazônia.

Sem treinamento ou equipamento adequado, muitas enfermeiras e médicos ao longo do rio morreram. Outros infectaram suas famílias.

Crivellari sabia que sua cidade era vulnerável. São três dias de barco de Manaus a Tefé, com balsas muitas vezes transportando 150 pessoas por vez.

"Nosso medo era que uma pessoa infectada contaminasse todo o barco", disse ela, "e foi isso que acabou acontecendo."

No início de julho, as mortes diárias em Tefé estavam caindo, e o Dr. Crivellari começou a celebrar os pacientes que ela tinha conseguido salvar. Ela não pensa mais em largar a medicina.

Tefé, como um todo, teve um fôlego coletivo cauteloso.

O vírus, pelo menos por enquanto, tinha se mudado para um novo lugar no rio.

Cuidando do corpo de Gauldino da Silva. Com tantos morrendo em casa, não testados, o verdadeiro pedágio do vírus na região pode nunca ser conhecido






Fontes: Dados de casos do Ministério da Saúde do Brasil. Taxas de mortalidade por Brasil.io.



Doente de Brasil : Como resistir ao adoecimento num país (des)controlado pelo perverso da autoverdade



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Eliane Brum


Jair Bolsonaro é um perverso. Não um louco, nomeação injusta (e preconceituosa) com os efetivamente loucos, grande parte deles incapaz de produzir mal a um outro. O presidente do Brasil é perverso, um tipo de gente que só mantém os dentes (temporariamente, pelo menos) longe de quem é do seu sangue ou de quem abana o rabo para as suas ideias. Enquanto estiver abanando o rabo – se parar, será também mastigado. Um tipo de gente sem limites, que não se preocupa em colocar outras pessoas em risco de morte, mesmo que sejam funcionários públicos a serviço do Estado, como os fiscais do IBAMA, nem se importa em mentir descaradamente sobre os números produzidos pelas próprias instituições governamentais desde que isso lhe convenha, como tem feito com as estatísticas alarmantes do desmatamento da Amazônia. O Brasil está nas mãos deste perverso, que reúne ao seu redor outros perversos e alguns oportunistas. Submetidos a um cotidiano dominado pela autoverdade, fenômeno que converte a verdade numa escolha pessoal, e portanto destrói a possibilidade da verdade, os brasileiros têm adoecido. Adoecimento mental, que resulta também em queda de imunidade e sintomas físicos, já que o corpo é um só.

É desta ordem os relatos que tenho recolhido nos últimos meses junto a psicanalistas e psiquiatras, e também a médicos da clínica geral, medicina interna e cardiologia, onde as pessoas desembarcam queixando-se de taquicardia, tontura e falta de ar. Um destes médicos, cardiologista, confessou-se exausto, porque mais da metade da sua clínica, atualmente, corresponde a queixas sem relação com problemas do coração, o órgão, e, sim, com ansiedade extrema e/ou depressão. Está trabalhando mais, em consultas mais longas, e inseguro sobre como lidar com algo para o qual não se sente preparado.

O fenômeno começou a ser notado nos consultórios nos últimos anos de polarização política, que dividiu famílias, destruiu amizades e corroeu as relações em todos os espaços da vida, ao mesmo tempo em que a crise econômica se agravava, o desemprego aumentava e as condições de trabalho se deterioravam. Acirrou-se enormemente a partir da campanha eleitoral baseada no incitamento à violência produzida por Jair Bolsonaro em 2018. Com um presidente que, desde janeiro, governa a partir da administração do ódio, não dá sinais de arrefecer. Pelo contrário. A percepção é de crescimento do número de pessoas que se dizem “doentes”, sem saber como buscar a cura.

Vou insistir, mais uma vez, neste espaço, que precisamos chamar as coisas pelo nome. Não apenas porque é o mais correto a fazer, mas porque essa é uma forma de resistir ao adoecimento. Não é do “jogo democrático” ter um homem como Jair Bolsonaro na presidência. Tanto como não havia “normalidade” alguma em ter Adolf Hitler no comando da Alemanha. Não dá para tratar o que vivemos como algo que pode ser apenas gerido, porque não há como gerir a perversão. Ou o que mais precisa ser feito ou dito por Bolsonaro para perceber que não há gestão possível de um perverso no poder? Bolsonaro não é “autêntico”. Bolsonaro é um mentiroso.


Podemos – e devemos – discutir como chegamos a ter um presidente que usa, como estratégia, a guerra contra todos que não são ele mesmo e o seu clã. Como chegamos a ter um presidente que mente sistematicamente sobre tudo. Podemos – e devemos discutir – como chegamos a ter um antipresidente. Assim como podemos – e devemos – perceber que a experiência brasileira está inserida num fenômeno global, que se reproduz, com particularidades próprias, em diferentes países.

Esse esforço de entendimento do processo, de interpretação dos fatos e de produção de memória é insubstituível. Mas é necessário também responder ao que está nos adoecendo agora, antes que nos mate.

Em 10 de julho, o psiquiatra Fernando Tenório escreveu um post no Facebook que viralizou e foi replicado em vários grupos de Whatsapp. Aqui, um trecho: “Acabei de atender a um homem de 45 anos, negro, sem escolaridade. Nos últimos cinco anos, viu seus colegas de setor serem demitidos um a um e ele passou a acumular as funções de todos. Disse-me que nem reclamou por medo de ser o próximo da fila. Tem sintomas de esgotamento que descambam para ansiedade. Qual o diagnóstico para isso? Brasil. Adoeceu de Brasil. Se eu tivesse algum poder iria sugerir ao DSM (o manual de transtornos mentais da psiquiatria) esse novo diagnóstico. Adoecer de Brasil é a mais prevalente das doenças. Entrei agora na Internet e vi que a reforma da previdência corre para ser aprovada sem sustos. O povo, adoecido de Brasil, permanece inerte. Vai trabalhar sem direito a aposentadoria até morrer de Brasil”.

Não há normalidade nem jogo democrático quando um perverso governa a partir da administração do ódio e da mentira

Alagoano da pequena Maribondo, Fernando Tenório fez residência e atuou na rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro. Atualmente, mantém consultório na capital fluminense e atende trabalhadores de um sindicato do setor hoteleiro. O psiquiatra me conta, por telefone, que cresceu muito o número de pessoas que chegavam ao seu consultório com sintomas como taquicardia, desmaios na rua, sinais de esgotamento corporal, dores de cabeça frequentes, sentimentos depressivos. Eram pessoas que estavam objetiva e subjetivamente esgotadas pela precarização das condições de trabalho, como jornada excessiva, acúmulo de funções, metas impossíveis de cumprir, falta de perspectivas de mudança, insegurança extrema. Tinham um “trabalho de merda” e, ao mesmo tempo, medo de perder o “trabalho de merda”, como testemunharam acontecer com vários colegas.

O psiquiatra diz que ele mesmo se descobriu adoecido meses atrás. “Fiquei muito mal, porque me senti quase um traficante de drogas legais. Estava tratando uma crise, que é social, no indivíduo. E, de certo modo, ao dar medicamentos, estava tornando essa pessoa apta a sofrer mais, porque a jogava de volta ao trabalho.” Na sua avaliação, o adoecimento está relacionado à precarização do mundo do trabalho nos últimos anos, acentuada pela reforma trabalhista aprovada em 2017, e foi agravado com a ascensão de um governo “que declarou guerra ao seu povo”. “O Brasil hoje é tóxico”, afirma.

Após a publicação do post, Tenório sentiu ainda mais o nível da toxicidade cotidiana do país: recebeu xingamentos e ameaças. Um dos agressores lembrou que sua filha, cuja foto viu em uma rede social, um dia poderia ser estuprada. A menina é um bebê de menos de 2 anos.

“Tóxico” é palavra de uso frequente de brasileiros ao relatarem o sentimento de viver em um país onde já não conseguem respirar. Na constatação de que o governo Bolsonaro já aprovou 290 agrotóxicos em apenas sete meses, o envenenamento ganha uma outra camada. É como se os corpos fossem um objeto atacado por todos os lados. País que ultrapassou a possibilidade das metáforas, a toxicidade do Brasil abrange todas as acepções.

Cresce nos consultórios os casos de depressão provocados e alimentados pelo contexto político e social

Mas que adoecimento é este que Tenório chama de “doente de Brasil”? Um psicanalista que prefere não se identificar por temer represálias explica que aumentou muito nos consultórios os quadros depressivos provocados pelo momento vivido pelo Brasil, em que especialmente pessoas ligadas à esquerda, mas não necessariamente ao PT, sentem uma total perda de sentido e horizonte. “Para a psiquiatria, a depressão é a tristeza sem contexto. Ou seja, ela é relacionada à estrutura psíquica de cada pessoa, às fundações e alicerces construídos na infância”, explica. “O que temos vivido hoje nos consultórios é o aumento da depressão com contexto, esta que não tem a ver com a estrutura do indivíduo e que nem vai melhorar no divã. Esta em que o uso de medicamentos só vai servir para obscurecer o esclarecimento das questões. Esta que só pode ser sanada por mudanças sociais.”

O rompimento dos laços, como a divisão das famílias provocada pela polarização política, tornou as pessoas ainda mais sujeitas ao adoecimento mental e com menos ferramentas para lidar com ele. Como disse um filósofo, ninguém deixa de dormir porque está tendo uma guerra no outro lado do mundo, com exceção daqueles que vivem a guerra. Com isso, ele queria dizer que as pessoas perdiam o sono muito mais por pequenas dores e preocupações comezinhas com as quais se identificavam, como as relacionadas à família e ao mundo dos afetos, do que por enormes barbáries que ocorriam no outro lado do mundo.

O que os brasileiros testemunharam foi uma inversão: a política, que sempre foi algo do campo público, invadiu o campo privado, passando a ser um fator íntimo, um fator primeiro de identificação. Dias atrás uma amiga presenciou uma conversa em que duas garotas decidiam quais os critérios para dividir apartamento com uma outra. “Não suportaria dividir com uma petista”, disse uma delas. Essa conversa, exceto no caso de militantes mais radicais, dificilmente aconteceria anos atrás: ninguém costumava perguntar qual era a orientação política antes de dividir a casa com alguém.

A eleição, que costumava ser um acontecimento pontual, da esfera pública, tornou-se algo crucial na esfera privada. Do mesmo modo, o inverso também aconteceu. Questões íntimas, como a orientação sexual de cada um, como o que acontece na cama de cada um, passaram a ser discutidas publicamente. Esse fenômeno atingiu fortemente laços que cada um considerava incondicionais, como os familiares, laços com os quais se contava para enfrentar a dureza da vida. E acentuou ainda mais os quadros depressivos e persecutórios, aumentando ansiedade e angústia, corroendo a saúde.

O sofrimento é agravado pela constatação de que as instituições não barram a violência do governo e do governante

Uma psicanalista de São Paulo, que também prefere não se identificar, acredita que o adoecimento do Brasil de 2019 expressa a radicalização da impotência. As pessoas, hoje, não sabem como reagir à quebra do pacto civilizatório representada pela eleição de uma figura violenta como Bolsonaro, que não só prega a violência como violenta a população todos os dias, seja por atos, seja por aliar-se a grupos criminosos, como faz com desmatadores e grileiros na Amazônia, seja por mentir compulsivamente. Não sabem, também, como parar essa força que as atropela e esmaga. Sentem como se aquilo que as está atacando fosse “imparável”, porque percebem que já não podem contar com as instituições – constatação gravíssima para a vida em sociedade. E então passam a sentir-se como reféns – e, seguidamente, a atuar como reféns.

“Como reagimos à violência de alguém como Bolsonaro, que faz e diz o que quer, sem que seja impedido pelas instituições?”, questiona. “Toda a nossa experiência dá conta de que a vida em sociedade é regulada por instâncias que vão determinar o que pode e o que não pode, que têm o poder de impedir a quebra do pacto civilizatório, este pacto que permite que a gente possa conviver. Nesta experiência de que há um regulador, se uma pessoa é racista, ela vai ser processada – e não virar presidente do país. O que vivemos agora, com Bolsonaro, é a quebra de qualquer regulação. E isso tem um enorme impacto sobre a vida subjetiva. Ninguém sabe como reagir a isso, como viver numa realidade em que o presidente pode mentir e pode até mesmo inventar uma realidade que não corresponde aos fatos.”

A documentação das experiências de autoritarismo em diferentes épocas e países costuma relatar o sofrimento físico e psíquico das vítimas, mas geralmente em condições explícitas. Como, por exemplo, um judeu num campo de concentração nazista. Ou uma das mulheres torturadas no Doi-Codi, em São Paulo, durante a ditadura militar do Brasil (1964-1985). Perceber essa violência explícita como violência é imediato. O que a experiência autoritária do bolsonarismo tem demonstrado é o quanto pode ser difícil resistir (também) à violência do cotidiano, aquela que se infiltra nos dias, nos pequenos gestos, na paralisia que vira um modo de ser, nas covardias que deixamos de questionar.

O cotidiano de exceção tem se infiltrado e realizado em milhões de pequenos gestos de autocensura, silêncio e ausência no Brasil

Há milhares, talvez milhões de pequenos gestos de conformação acontecendo neste exato momento no Brasil. Em silêncio. Pequenos movimentos de autocensura, ausências nem sempre percebidas. Uma autora me conta que conseguiu manter seu livro no catálogo da editora sem usar a palavra gênero.... para falar de gênero e sexualidade. Uma diretora me diz que vestiu os corpos de suas atrizes, até então nuas, numa peça de teatro. A professora de uma das mais importantes universidades públicas do país me relata que muitos colegas já deixaram de analisar determinados temas em salas de aula por medo do “poder de polícia” dos alunos, que têm gravado as aulas e se comportado de forma ainda mais violenta que a polícia formal. Um curador de eventos preferiu não fazer o evento. Mudou de assunto. Outro deixou de convidar uma pensadora que certamente levaria bolsocrentes para a sua porta. Nunca saberemos o que poderia acontecer, porque o acontecimento foi impedido para não sofrer o risco de ser impedido.

Há tantos que já preferem “não comentar”. Ou que dizem, simpaticamente: “me deixa fora dessa”. É também assim que o autoritarismo se infiltra, ou é principalmente assim que o autoritarismo se infiltra. E é também assim que se adoece uma população por aquilo que ela já tem medo de fazer, porque antecipa o gesto do opressor e se cala antes de ser calada. E em breve talvez tenha medo também de sussurrar dentro de casa, num mundo em que os aparelhos tecnológicos podem ser usados para a vigilância. Chega o dia em que o próprio pensamento se torna uma doença autoimune. É assim também que o autoritarismo vence antes mesmo de vencer.

Um dos sintomas do cotidiano de exceção que vivemos é a colonização de nossas mentes. Mesmo pessoas que viveram a ditadura militar não têm recordação de algum momento da sua vida em que tenham pensado todos os dias no presidente da República. Bolsonaro administra o horror dos dias, com suas violências e mentiras, de um modo que o torna onipresente. Faça o teste: quantas horas você consegue ficar sem pensar em Bolsonaro, sem citar uma bestialidade de Bolsonaro? É isso o autoritarismo. Mas sobre isso poucos falam.

Bolsonaro encarna a vanguarda messiânica-apocalíptica do mundo

Se Bolsonaro encarna a vanguarda messiânica-apocalítica do mundo, é preciso sublinhar que os brasileiros não estão sós. Um amigo estrangeiro me conta que, desde que Donald Trump assumiu, a primeira coisa que ele faz ao acordar é conferir qual é a barbaridade que o presidente americano escreveu no Twitter, porque sente que isso afeta diretamente a vida dele. E afeta.

Mario Corso, psicanalista e escritor gaúcho, aponta que não é possível pensar no que ele chama de “ethos depressivo” deste momento fora do contexto do Ocidente. “Veja o Reino Unido. O novo primeiro-ministro (referindo-se ao pró-Brexit Boris Johnson) é um palhaço. E eles já tiveram Churchill!”, exemplifica. “O problema, no Brasil, é que além de toda a crise global, elegemos um cretino para presidente”, diz o psicanalista. “O que assusta é que não há freios para impedi-lo. E, assim, ele segue atacando os mais frágeis. Como Bolsonaro é covarde, ele não engrossa com os maiores que ele.”

Boris Johnson não chega a ser um Donald Trump. E nem Donald Trump chega a ser um Jair Bolsonaro. Mas a diferença maior está na qualidade da democracia. Tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido, as instituições têm conseguido exercer o seu papel. No Brasil, não chega a ser perda total – ou não bastou (ainda) “um cabo e um soldado” para fechar o STF, como sugeriu o futuro possível embaixador do país nos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro, o garoto zerotrês. Mas a precariedade – e com frequência a omissão – das instituições – quando não conivência – são evidentes. “Enquanto Bolsonaro não consegue uma ditadura total, porque isso ele quer, mas ainda não conseguiu, ele antecipa a ditadura pelas palavras”, diz Corso. “Bolsonaro usa aquilo que você definiu como autoverdade para antecipar a ditadura. Os fatos não importam, o que ‘eu’ digo é o que é.”

“A guerra acontece quando a palavra, como mediadora, se extinguiu”

Para Rinaldo Voltolini, professor de psicanálise da Universidade de São Paulo, a autoverdade é a amputação da palavra no sentido pleno. “Este é um grande disparador do sofrimento das pessoas, ao constatarem que estão fora no nível mais importante. Não é que você está fora porque não tem uma casa ou um carro, hoje você está fora das possibilidades de leitura do mundo. O que você diz não tem valor, não tem sentido, não tem significado. É como se, de repente, você já não tivesse lugar na gramática”, diz o psicanalista. “O que é a guerra? A guerra acontece quando a palavra, como mediadora, se extinguiu. Isso acontece entre duas pessoas, entre países. Sem a mediação da palavra, se passa diretamente ao ato violento".

A autoverdade, como escrevi neste espaço, determinou a eleição de Bolsonaro. E seguiu moldando sua forma de governar pela guerra, o que implica a destruição da palavra. Assim, desde o início do governo, Bolsonaro tem chamado os órgãos oficiais de mentirosos sempre que não gosta do resultado das pesquisas. Como quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostrou que o número de desempregados tinha aumentado no seu governo.

Nos últimos dias, porém, o antipresidente levou a perversão da verdade, esta que torna a verdade uma escolha pessoal, à radicalidade. Decidiu que a jornalista Míriam Leitão não foi torturada – e ela foi. Insinuou que o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil teria sido executado pela esquerda, quando ele desapareceu por obra de agentes do Estado na ditadura militar. Decidiu que ninguém mais passa fome no Brasil – o que é desmentido não só pelas estatísticas como pela experiência cotidiana dos brasileiros. Decidiu que os dados que apontaram a explosão do desmatamento na Amazônia, produzidos pelo conceituado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, eram mentirosos. Isso porque apenas no mês de julho de 2019 foi destruída uma área de floresta maior do que a cidade de São Paulo, e o índice de desmatamento foi três vezes maiores do que em julho do ano passado. E Bolsonaro decidiu ainda que “só os veganos que comem vegetais” se importam com o meio ambiente.

Bolsonaro controla o cotidiano porque fora de controle. Bolsonaro domina o noticiário porque criou um discurso que não precisa estar ancorado nos fatos. A verdade, para Bolsonaro, é a que ele quer que seja. Assim, além da palavra, Bolsonaro destrói a democracia ao usar o poder que conquistou pelo voto para destruir não só direitos conquistados em décadas e todo o sistema de proteção do meio ambiente, mas também para destruir a possibilidade da verdade.

O que vivemos não é mal-estar, mas horror

“Narrar a história é sempre o primeiro ato de dominação. Não é por acaso que Bolsonaro quer adulterar a história. A história da ditadura é construída por muitos documentos, é uma produção coletiva. Mas ele decide que aconteceu outra coisa e não apresenta nenhum documento para comprovar o que diz”, analisa Voltolini. “Não é que estamos vivendo o mal-estar na civilização. Isso sempre houve. A questão é que, para ter mal-estar é preciso civilização. E hoje, o que está em jogo, é a própria civilização. Isso não é da ordem do mal-estar, mas da ordem do horror.”

Como enfrentar o horror? Como barrar o adoecimento provocado pela destruição da palavra como mediadora? Como resistir a um cotidiano em que a verdade é destruída dia após dia pela figura máxima do poder republicano? Rinaldo Voltolini lembra um diálogo entre Albert Einstein e Sigmund Freud. Quando Einstein pergunta a Freud como seria possível deter o processo que leva à guerra, Freud responde que tudo o que favorece a cultura combate a guerra.

Os bolsonaristas sabem disso e por isso estão atacando a cultura e a educação. A cultura não é algo distante nem algo que pertence às elites, mas sim aquilo que nos faz humanos. Cultura é a palavra que nos apalavra. Precisamos recuperar a palavra como mediadora em todos os cantos onde houver gente. E fazer isso coletivamente, conjugando o nós, reamarrando os laços para fazer comunidade. O único jeito de lutar pelo comum é criando o comum – em comum.

É preciso dizer: não vai ficar mais fácil. Não estamos mais lutando pela democracia. Estamos lutando pela civilização.


Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. 

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