Mostrando postagens com marcador negacionismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador negacionismo. Mostrar todas as postagens

A morte do amigo negacionista



A morte de um amigo que virou bolsonarista também 
pode ser devastadora


Moisés Mendes

Morreu o amigo de adolescência de um grupo que se reúne há um ano e meio no WhatsApp. Esse é o resumo da história verdadeira de um sujeito brincalhão, alegre, falante, o cara aquele que se encaixava em qualquer turma com qualquer assunto e com qualquer tipo de risada, das contidas, compridas ou gargalhadas.

Um colega legal, daqueles que não colocava ninguém a correr se chegasse atrasado numa rodinha de conversa. Isso na segunda metade dos anos 70, no 2º grau, quando a escolha do que se quer ser na vida é uma pela manhã e duas outras à tarde.

O amigo não vacilou muito quando adulto e virou empresário. Quando se reuniam, muito tempo depois, já com famílias, filhos e agregados, ele aparecia.

Eram encontros raros, mas lá estava ele com o mesmo perfil. Outros mudaram um pouco ou muito os jeitos e temperamentos. Ele não. Era sempre o mesmo. Expansivo, assertivo, sempre divertido e agora um homem próspero.

Quando o grupo foi criado no Whats, no começo do ano passado, os colegas se reagruparam. Democratas com ideias progressistas e humanistas e atuando nas mais diversas áreas. E então o amigo aquele apresentou-se ali como se fosse outra pessoa.

O colega sempre leve depois de homem maduro, já com mais de 60 anos, incorporou no Whats um sujeito pesado. Não era mais o tucano que poucos sabiam que havia sido. Era um ativista bolsonarista e negacionista.

O grupo se abateu. O colega passou a pregar contra o isolamento e a vacina e em defesa do kit covid, como se fosse um modelo para cursinho de extremista de direita. Virou uma caricatura absolutista.

O grupo se sentiu constrangido, a maioria debandou em poucos meses, e o colega também foi embora. O adolescente interativo, agregador, divertido, não existia mais.

Mas, quando ele saiu, outros voltaram, sob um clima muito mais de desconforto do que de repulsa e condenação. A turma se reagrupou de novo quando o amigo aquele não estava mais por perto.

Há pouco mais de um mês ficaram sabendo que ele havia sido infectado. Depois, foram informados de que estava na UTI e entubado. E esta semana alguém deu a notícia de que havia morrido.

Poucos antes de morrer, reafirmou nas redes sociais (porque alguém espiava suas postagens) o que pensava da vacina e dos remédios milagrosos de Bolsonaro.

Sei, porque me contaram, que o sentimento de perda foi intenso e dolorido. O grupo agarrou-se à memória do guri divertido, para despedir-se dele, e não do sessentão que havia se apropriado do adolescente do colégio.

A morte nos reapresenta o dilema que, quanto mais a pandemia se espicha, mais fica irresolvido. O que teria virado esse amigo, aos 60 anos, se Bolsonaro não tivesse chegado ao poder e dividido famílias, colegas, vizinhos?

Os amigos que perdemos para a extrema direita em meio à ascensão do bolsonarismo são uma invenção de Bolsonaro, ou Bolsonaro só existe porque esses nossos amigos estavam à espera de um sujeito que incorporasse todas as crueldades e todos os ódios, ressentimentos e preconceitos?

Foi mesmo Bolsonaro quem fez aflorar a índole do amigo que se afastou da turma, ou esse e outros amigos criaram o Bolsonaro poderoso, eleito pelo voto, para que assim pudessem ser representados e se expressar como de fato são ou eram?

A morte de cada amigo da adolescência vai nos tirando aos poucos o que construímos naqueles tempos na direção da eternidade. A morte de um amigo que virou bolsonarista também pode ser devastadora.

Um adulto bolsonarista não deveria ter o direito de dar fim prematuro ao que ele mesmo foi no nosso tempo de colégio. O bolsonarismo tenta destruir até o nosso passado e as nossas melhores memórias.


   Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim) - https://www.blogdomoisesmendes.com.br/





A ignorância não morreu





Anderson Pires*

A morte de Olavo de Carvalho é um fato carregado de simbolismos. O pseudopensador cumpriu o papel de sistematizar a negação ao saber. Como um oráculo do mundo bizarro, espalhava obscurantismo e um moralismo desumano de ultradireita. O defensor de teses absurdas como o terraplanismo, crítico do globalismo, escritor admirado por uma legião de figuras exóticas, foi alçado a grande influenciador nas decisões do país, com o título de guru do bolsonarismo.

A impressionante ascensão de Olavo de Carvalho diz muito sobre o culto a ignorância. Abre espaço para questionar: a quem serve esse tipo de idolatria, por alguém que propaga ideias sem qualquer fundamento científico? Mais estranho ainda, quando muitos dos seus discípulos são pessoas que tiveram acesso a boa educação, em algumas escolas e universidades renomadas, mas nem assim adotam tom crítico em relação aquilo que Olavo propagava.

A saída de cena de Olavo de Carvalho não significa cessar as ideias que defendia. Mas engana-se quem pensa que os pontos de maior convergência entre os olavistas está na discussão sobre a forma da Terra ou se a Antártida está na borda do planeta. Os pontos mais fortes de união entre seus seguidores são a promoção da desigualdade social e a propagação de preconceitos.

O terraplanismo está mais no campo do folclore, que das questões centrais que movem as figuras de extrema direita que gravitavam em torno de Olavo de Carvalho e que apoiaram Bolsonaro. Mais importante para esse grupo é manter a segregação das minorias, o que, consequentemente, implica em aumento da desigualdade e manutenção de interesses.

A relação entre negacionismo, desigualdade e preconceito são intrínsecas. Porque servem a uma classe social específica, minoritária, bolsonarista e que se une em torno de práticas desumanas. Parece absurdo que tenhamos médicos contra a vacina e que defendem o uso de medicamentos sem eficácia para covid-19. Porém, não podemos esquecer que o elo mais forte não é o aparente. Os mesmos que negam a ciência, desconsideram que a desigualdade é decorrente da exploração que o capitalismo promove e que as questões identitárias não são fruto de opções morais.

As discussões em torno da Terra Plana são mais ilustrativas, servem como parte da retórica quase publicitária que esse grupo adota. O cerne está na manutenção de preconceitos, que ferem princípios, mas servem para aglutinar os que não conseguem aceitar uma sociedade plural, nem enxergar com empatia pessoas que sofrem pela falta de oportunidade.

O olavista bolsonarista irá identificar razões morais para que um jovem congolês seja assassinado num quiosque na Barra da Tijuca. Na mesma praia que mora o Presidente em seu condomínio fechado, a desigualdade se expõe da maneira mais brutal. Porém, não se verá de seus seguidores uma atitude humana que vá além da piedade. O jovem morto será tratado pela ótica de quem se diz cristão, mas não aceita que para se viver existem condições objetivas que muitas pessoas não dispõem.

Em suma, a ignorância daqueles que lamentaram a morte de Olavo de Carvalho está recheada de preconceitos, interesses e falta de humanismo. Para esses, é conveniente a quebra de princípios acadêmicos, religiosos, morais ou éticos. Seja lá qual for a forma da Terra, o que querem é que seja ainda mais desigual e desumana.


*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.





Seguidores de Olavo de Carvalho nos diversos Ministérios
 do Governo Bolsonaro