Mostrando postagens com marcador Rússia x Ucrânia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Rússia x Ucrânia. Mostrar todas as postagens

Guerra na Europa escancara o caos econômico do Brasil

 

Capa de 2009 : Brasil Decola 


Capa de 2021 : Brasil Desolado 




Ela não reclamou quando, no governo Temer, a gasolina
 começou a ficar cara ...

 E nem agora, com Bolsonaro, que está R$ 8,00

Cadê ela ? 







Carta para Arthur do Val : a condição feminina na guerra e na paz


Refugiados ucranianos chegando na Polônia


Jamil Chade

Senhor deputado, Confesso que não conhecia seu nome, e nem sua denominação de guerra. Mas os áudios indigestos que vazaram com seus comentários sobre a situação na Ucrânia me obrigaram a escrever aqui algumas linhas sobre o que eu vi em campos de refugiados e filas de pessoas desesperadas para escapar da guerra e da pobreza ao longo de duas décadas.

Não estou acusando o senhor e sua comitiva do que estará exposto abaixo. Mas considero que, sem entender essa dimensão do sofrimento humano, fica impossível justificar uma viagem como a que o senhor faz para ajudar a defender um povo.

Ao longo da história, a violência sexual é uma das armas de guerra mais recorrentes para desmoralizar uma sociedade. Ela não tem religião, nem raça. Ela destrói. Demonstra o poder sobre o destino não apenas das vidas, mas também dos corpos e almas.

Percorrendo campos de refugiados em três continentes, o que sempre mais me impressionou foi a vulnerabilidade das mulheres nessa situação.

Mas, antes, vamos ser claros aqui. Não precisamos sair do Brasil para saber que as mulheres, simplesmente por serem mulheres, precisam passar a vida se explicando. Como se necessitassem de chancela ou justificativa para determinar o destino de seu corpo ou coração, se podem trabalhar ou ter tesão. Intolerável, não?

Então, o senhor pode imaginar o que isso significa em tempos de guerra, onde a lei e a moral são suspensas?

Conheci certa vez uma garota yazidi. Ela me contou como, depois de sua cidade ser tomada por islamistas, ela foi transformada em escrava sexual. Aqueles olhos verdes intensos se enchiam de lágrimas quando contava que, num calabouço, ela e as demais meninas se dividiam em dois grupos.

Aquelas que rezavam para sobreviver e aquelas que rezavam para morrer logo.

Ela também me contou que, num ato de solidariedade com as outras mulheres que viriam depois delas, foi iniciado um gesto espontâneo de escrever mensagens nas paredes daqueles quartos imundos, inclusive com dicas de como agir. Escreviam com a única cor que tinham. O vermelho do sangue de suas vaginas estupradas.

O senhor me diria: claro, isso é coisa de terrorista islâmico. Sim, sem dúvida. Mas quero lhe contar o que investigações e auditorias revelaram em um local mais próximo de nós: o Haiti.

Ali e em outros locais onde estão destacadas, as tropas de paz da ONU - repletas de moral, credibilidade e protocolos - foram acusadas de estupro e de abusos com mulheres, meninas e meninos. Alguns, em troca de comida. Num caso específico, um garoto era semanalmente estuprado por oficiais, em troca de bolachas. Há até mesmo uma categoria de crianças hoje nesses países, "os filhos da ONU".

Na Sérvia, num barracão onde eram depositados os refugiados que aguardavam para chegar até a Europa Ocidental, conheci uma mulher que não falava. Sua irmã, depois, veio me explicar que ela ficou muda depois de ter sido estuprada pelo "guia" que seus pais tinham contratado na Turquia para que elas cruzassem as fronteiras. Para pagar pelo guia, os pais venderam as únicas coisas que tinham: uma casinha e dois animais.

Em Dadaab, no Quênia, entendi toda a minha ignorância quando fui perguntar para um grupo de crianças do que elas tinham mais medo. Achei que a resposta seria: as bombas de Mogadíscio. Mas era do escuro do campo de refugiados. Quando pedi para saber o motivo, uma delas sussurrou: "não podemos nem ir ao banheiro pela noite. Um homem pode fazer coisas ruins com nosso corpo".

Anos depois, voltei a viajar para a África. Da janela do avião a hélice em que eu voava, podia ver como um garoto usava um pedaço de galho para tentar dirigir o destino de vacas e outros animais. Enquanto ele conseguia dar direção ao gado, algumas reses escapavam um pouco adiante.

Do assento em que eu estava, quase não consegui ouvir quando o piloto se virou para trás e, competindo com o barulho do motor, gritou que estávamos iniciando a aterrissagem. Jamais imaginaria que, minutos depois, era sobre aquele local de terra de onde o garoto estava retirando os animais que o avião iria pousar. O que de fato eu tinha visto era a preparação da pista de pouso.

Eu tinha viajado para um lugar a oeste da cidade de Bagamoyo, na Tanzânia, para escrever sobre o impacto da Aids numa das regiões mais pobres do planeta. Mas seria naquele local que eu descobriria, de uma maneira inusitada, a dimensão do drama de imigrantes e refugiados. Ao longo dos anos, visitei campos de refugiados na fronteira do Iraque, entre o Quênia e a Somália, em Darfur, na rota entre a Turquia e a Europa. Vi milhares de pessoas sem destino. Mas, nas proximidades de Bagamoyo, aquela história era diferente. Oficialmente, não havia uma guerra. Não havia um acampamento de refugiados. Mas eu logo descobriria que nem por isso o desespero deixava de estar presente naquela população.

Eu fazia uma visita a um hospital e esperava para falar com o diretor. Por falta de médicos, ele fora chamado para fazer um parto. Sabia que aquilo significava que eu passaria horas ali, à espera de minha entrevista. Restava fazer o que eu mais gostava nessas viagens: descobrir quem estava ali, falar com as pessoas, perambular pelo local, ler os cartazes e simplesmente observar. No portão do centro de atendimento, centenas de mulheres com seus véus coloridos aguardavam de forma paciente. Tentavam afastar as moscas, num calor intenso, enquanto o choro de crianças rompia os muros descascados daquela entrada de um galpão transformado em sala de espera.

Ao caminhar para uma das alas, fui barrado. Os enfermeiros me pediram que não entrasse no local. Quando perguntei qual era a especialidade daquela área, disseram que não podiam revelar. Em partes da África, o preconceito e o estigma em relação aos pacientes de Aids obrigam os hospitais a não indicar nem em suas paredes o nome da doença. Decidi sair do prédio em ruínas e, num dos pátios do hospital, vi duas garotas brincando.

Não tinham mais de 10 anos de idade. 0E o único momento em que olharam para o chão, sem resposta, foi quando perguntei o que faziam ali. Mas a curiosidade delas em saber o que um rapaz branco, com um bloco de notas na mão e uma câmera fotográfica, fazia lá era, era maior que sua vontade de contar histórias. Desisti de seguir com minhas perguntas. Expliquei que era jornalista brasileiro e, para dizer meu nome, mostrei um cartão de visita, que acabou ficando com elas.

Quando iam responder à minha pergunta sobre os seus nomes, nossa conversa foi interrompida por uma senhora que, da porta do hospital, me avisava que o diretor já estava à disposição para a entrevista. Deixei aquelas crianças depois de menos de cinco minutos de conversa. Já caminhando, virei e disse uma das poucas expressões que tinha aprendido em suaíli: kwaheri - "adeus". Ganhei em troca dois enormes sorrisos.

Terminada a entrevista com o diretor do hospital, confesso que nem sequer notei se as meninas continuavam ou não no pátio. Estava ainda sob o choque de um pedido do gerente da clínica, que, ao terminar de me explicar o que faziam, me perguntou se eu não poderia deixar para eles qualquer comprimido que tivesse na mala. Qualquer um. Até mesmo se o prazo de validade já tivesse expirado. Alguns meses depois, já na Suíça, abri minha caixa de correio de forma despretensiosa ao chegar em casa. Num envelope surrado e escrito à mão, chegava uma carta de Bagamoyo.

Pensei comigo: deve ser um erro e a carta deve ter sido colocada na minha caixa por engano. Eu não conheço ninguém em Bagamoyo. Mas o envelope deixava muito claro: era para Jamil Chade. Antes mesmo de entrar em casa, deixei minha sacola no chão e abri o envelope. Uma vez mais, meu nome estava no papel, com uma letra visivelmente infantil. Eu continuava sem entender. Até que comecei a ler. No texto, em inglês, quem escrevia explicava que tinha me conhecido diante do hospital e que tinha meu endereço em Genebra por conta de um cartão que eu lhe havia deixado.

Como num sonho, as imagens daquelas garotas imediatamente apareceram em minha mente. Mas o conteúdo daquela carta era um verdadeiro pesadelo. A garota me escrevia com um apelo comovedor. "Por favor, case-se comigo e me tire daqui. Prometo que vou cuidar de você, limpar sua casa e sou muito boa cozinheira." A carta contava que sua mãe havia morrido de Aids - naquele mesmo hospital - e que seu pai também estava morto. Cada um dos oito filhos fora buscar formas de sobreviver e ela era a última da família a ter permanecido na empobrecida cidade. "Preciso sair daqui", escrevia a garota. A cada tantas frases, uma promessa se repetia: "Eu vou te amar."

Uma observação no final parecia mais um atestado de morte: "Com as últimas moedas que eu tinha, comprei este envelope, este papel e este selo. Você é minha última esperança." Deputado, talvez o senhor classificaria essa pessoa no grupo de "meninas fáceis". Eu, porém, chorei de desespero e de impotência diante daquele pedido de resgate. Eu e o senhor- homens brancos - nascemos como a classe mais privilegiada do planeta. Eu e o senhor não tivemos de fazer nada para adquirir esses privilégios. Existimos.

É nossa obrigação, portanto, desmontar o processo de profunda desumanização de uma guerra e da miséria. Cada um com suas armas. Não sei qual será o destino que a Assembleia Legislativa em São Paulo, seu partido e seus eleitores darão ao senhor. Qualquer que seja ele, só espero que esse episódio revoltante sirva para que haja alguma insurreição de consciências sobre a condição feminina. Na guerra e na paz.

*Grato pela atenção - Jamil

*Jamil Chade - Colunista do UOL






Ouça o áudio completo :







Clique nos links baixo para ver também :

 





E no mundo . . . 05/03/2022

 












 




Como chegamos aqui? Por Boaventura de Sousa Santos



Resistindo a reconhecer seu declínio, desde a saída caótica do Afeganistão ao medíocre desempenho na pandemia, os EUA insistem em fugas para a frente.

A soberania da Ucrânia não pode ser posta em causa. A invasão da Ucrânia é ilegal e deve ser condenada. A mobilização de civis decretada pelo presidente da Ucrânia pode ser considerada um ato desesperado, mas faz prever uma futura guerra de guerrilha. Putin deveria ter presente a experiência dos EUA no Vietnã: o Exército regular de um invasor, por mais poderoso que seja, acabará por ser derrotado, se o povo em armas se mobilizar contra ele. Tudo isto faz prever incalculáveis perdas de vidas humanas inocentes. Ainda mal refeita da pandemia, a Europa prepara-se para um novo desafio de proporções desconhecidas. A perplexidade perante tudo isto não poderia ser maior.

A pergunta é esta: como e por quê chegamos aqui? Há trinta anos a Rússia (então União Soviética) saía derrotada da Guerra Fria, desmembrava-se, abria as suas portas ao investimento ocidental, desmantelava o Pacto de Varsóvia, o correspondente soviético da OTAN, os países do Leste Europeu emergiam da subordinação soviética e prometiam democracias liberais numa vasta área da Europa. O que se passou desde então para que o Ocidente esteja hoje de novo a defrontar a Rússia? Dada a diferença de poder entre a Rússia e as potências ocidentais em 1990, a resposta mais imediata será que tal se deve à total inépcia dos líderes ocidentais para capitalizaram os dividendos do colapso da União Soviética.

Sem dúvida que a inépcia é patente e caracteriza bem o comportamento da União Europeia ao longo destes anos. Foi incapaz de construir uma base sólida para a segurança europeia que obviamente teria de ser construída com a Rússia, e não contra a Rússia, quanto mais não seja para honrar a memória de cerca de vinte e quatro milhões de mortes, o preço que a Rússia pagou para se libertar e liberar a Europa do jugo nazista.

Mas esta resposta é insuficiente se tivermos em mente a política externa dos EUA nos últimos trinta anos. Com o fim da Guerra Fria, os EUA sentiram-se donos do mundo, um “mundo finalmente unipolar”. As potências nucleares que os podiam ameaçar estavam neutralizadas ou eram amigas. As ideias de correlação de forças e de equilíbrio de poderes desapareceram do seu vocabulário. Esta acalmia fazia inclusivamente prever o fim da OTAN por falta de objetivo.

Mas havia a Iugoslávia, o país que, depois do fim da ocupação nazista em 1945, o general Tito tinha transformado numa federação de regiões (Croácia, Eslovénia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro, Sérvia Kosovo, Macedónia), um regime que se pretendia independente tanto da União Soviética como do Ocidente. Os EUA, com o entusiástico apoio da Alemanha, acharam que era tempo da Iugoslávia colapsar. Os graves conflitos internos e as crises financeiras dos anos 1980 foram aproveitadas para fomentar a divisão e o ódio. Uma região, onde antes florescera o convívio interétnico e inter-religioso, transformou-se num campo de ódios.

A nova guerra dos Balcãs, no início da década de 1990, transformava-se assim na primeira guerra em solo europeu depois de 1945. Violência inaudita foi cometida por todos os contendores, mas para o Ocidente, os vilões eram apenas os sérvios, todos os outros povos eram nacionalistas heroicos. Os países ocidentais (à cabeça, a Alemanha) apressaram-se a reconhecer a independência das novas repúblicas em nome dos direitos humanos e da proteção das minorias. Em 1991, o Kosovo exigia em referendo a sua independência da Sérvia e oito anos depois a OTAN bombardeava Belgrado para fazer cumprir a vontade dos kosovares.

Qual é a diferença entre o Kosovo e Donbass, onde as repúblicas etnicamente russas realizaram referendos em que se manifestaram a favor da independência? Nenhuma, exceto que o Kosovo foi apoiado pela OTAN e as repúblicas do Donbass são apoiadas pela Rússia. Os acordos de Minsk de 2014 e 2015 previam a grande autonomia destas regiões. A Ucrânia recusou-se a cumpri-los. Foram, pois, rasgados muito antes de Putin fazer o mesmo. Qual a diferença entre a ameaça à sua segurança sentida pela Rússia perante o avanço da OTAN e a “crise dos mísseis” de 1962, quando os soviéticos tentaram instalar mísseis em Cuba e os EUA, ameaçados na sua segurança, prometeram defender-se com todos os meios, inclusivamente a guerra nuclear?

A resposta à pergunta sobre como e por que chegamos aqui reside fundamentalmente num erro estratégico dos EUA e da OTAN, o de não terem visto que nunca estiveram num mundo unipolar por eles dominado. No momento em que terminava a primeira guerra fria, crescia a China, com o apoio entusiasta das empresas norte-americanas em busca de salários baixos. Assim germinava o novo rival dos EUA, e com isso a nova Guerra Fria em que estamos a entrar, aliás potencialmente mais séria que a anterior. Apostados em não reconhecer o seu declínio, desde a saída caótica do Afeganistão ao medíocre desempenho na pandemia, os EUA insistem em fugas para a frente, e nessa estratégia pretendem arrastar a Europa.

Esta pagará uma alta fatura pelo que se está acontecendo. A mais alta de todas recairá sobre a Alemanha, o motor da economia europeia e a única verdadeiramente concorrente dos EUA. É fácil concluir quem beneficiará da crise que aí vem, e não me refiro apenas a quem irá fornecer petróleo e gás.

Por sua vez, a tentativa de isolar a Rússia, sobretudo depois de 2014, visa acima de tudo a China. Será outro erro estratégico pensar que assim se enfraquece a China. A China acaba de declarar que não há comparação possível entre a Ucrânia e Taiwan porque, para ela, Taiwan é território chinês. A implicação é clara: para a China, a Ucrânia não é território russo. Mas daí a pensar que se está a criar uma divisão entre a China e a Rússia será pura auto-ilusão.

Não tenho dúvida de que para a Europa é melhor um mundo multipolar governado por regras de coexistência pacífica entre as grandes potências do que um mundo exclusivamente dominado por um só país, porque, se isso alguma vez vier a suceder, será à custa de muito sofrimento humano. A invasão da Ucrânia é inaceitável. O que não se pode dizer é que não foi provocada. A Rússia, como grande potência que é, não se devia deixar provocar. Será que a invasão da Ucrânia é mais uma demonstração de fraqueza do que de força? Os próximos tempos o dirão.

Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de O fim do império cognitivo (Autêntica).